Com menta naquele lugar. É bom.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Vermelho cor de sangue - Parte 8

Deitado na cama, por acaso olha o relógio do pequeno aparelho de rádio, desses que só toca AM/FM. São 11:58. Concentra os olhos ardidos na hora do radinho até que dê meia-noite. Quarto escuro, relógio aceso com a luz vermelha e os olhos com atenção nas horas. Carlos pode estar fazendo o que for, pintando, comendo, na rua, transando, que ao perceber que faltam apenas alguns minutos para mudar a hora, ele pára o que está fazendo para ver todos aqueles números virarem um monte de zeros. Mania que tem desde garoto. Meia-noite. Adormece tranquilo e satisfeito.

Batem na porta. Não atende. 15 segundos depois, batem novamente. Não atende. Quatro segundos depois batem com mais força. Não atende, mas perde o sono - Se bater outra vez eu atendo - pensou. Silêncio por longos dez segundos. Levanta, indeciso, se corre pra atender ou esquece. Caminha rápido até a porta, abre e não vê ninguém. Fica puto e vai à geladeira beber algo. Joga uma água no rosto, se alonga, grita pra trabalhar as cordas vocais e tirar a voz de loucutor de rádio, pega um cigarro, acende e vai pra varanda, acordar.
Sol na cara, olhos quase fechados, e a carne oscilante que se arrepia ao leve vento frio e queima sob calor do Rio. Trinta e quatro graus, dia de praia para muitos. Carlos se junta a exceção. Sábado é dia de trabalho. Mas antes vai tomar café na rua.

Um pingado, pão na chapa e o jornal do dia. Muita discussão de futebol entre os velhos sem camisa com pão na mão. Pede uma água após o café e acende um cigarro, o ambiente eufórico daquela padaria o agrada e esquece o mundo. Enquanto se questiona como o homem pode chegar a tal ponto da vida em que sua vida se resume em futebol, contas a pagar e cerveja, é rapidamente surpreendido com dois rapazes entrando correndo na padaria levando o que suas mãos eram capazes. Um, ainda cambaleante, com um pacote de pão para cachorro-quente e alguns pacotes de biscoito recheado o olha com a expressão de medo e desespero. O outro leva um refrigerante. Provavelmente o assalto fora forjado, e não improvisado. Um rouba a comida e o outro a bebida. Do silêncio mórbido tomado por instantes, só se houve os gritos do Pereira, dono da padaria, xingando os rapazes. Negros, sujos, rasgados, descalços e com fome. O ambiente fica um tanto pesado depois do acontecido, e Carlos aproveita para ir para casa. Em Santa Teresa e em quase todo o Rio de Janeiro é uma cena comum. Jovens moradores de rua assaltando algum estabelecimento ou algum indivíduo. Pensa, um tanto assustado naqueles jovens. Se eles não roubarem, como vão comer, se questiona aflito. Pedindo esmola, fazendo malabaris, vendendo drogas, enfim, cada escolha depende do tamanho de suas prioridades. Saciar a vontade da barriga ou a da cabeça. Comer ou ter o que todos têm. Pensando nos garotos e seu futuro incerto, foi abordado sobre o sol das onze da manhã.
- Me dá um cigarro? - Automaticamente pega o maço e retira um cigarro, sem reconhecer a voz de Constanza, juntamente com o isqueiro e oferece para a guria.
- O que houve? pergunta encabulada, com o olhar seco de Carlos.
- Ah, é você. Me desculpe, não tinha visto, talvez esse sol na cara...
- E aí, como você tá?
- Bem, quer dizer, mais ou menos, acabei de assistir um assalto na padaria alí e estou meio abalado.
- É, esses pivetes são fogo, não deixam a gente em paz. - Resmunga Constanza.
- Mas eles não têm culpa, é o mundo que os faz desse jeito.
- Ah... - Carlos interrompe para não dar continuidade àquela conversa, na qual viu a posição divergente da jovem menina e rapidamente muda o rumo da prosa - O que tá fazendo por aí?
- Passeando, e você?
- Nada também.
- Na verdade foi bom te encontrar, queria falar uma coisa contigo.
- Diga - Responde suando frio.
- Queria te pedir uma coisa, mas tipo, não sei se você vai querer, é que eu queri...
- Pode falar - interrompendo novamente.
- Então, queria que você me ensinasse a pintar.
- Olha, não sou professor, nem sei se realmente sei pintar, mas podemos ver isso.
- Ah que bom! Quando posso passar lá para começarmos?
- Quando você quiser, estiver disponivel, não tiver compromisso, enfim.
- Tá, vou lá hoje, daqui a pouco.
- Tá bom, te espero lá.


Carlos ao se despedir de Constanza na rua foi correndo para casa, arrumou a casa, preparou o material, ergueu o cavalhete, limpou os pincéis, procurou o lápis da sorte que estava desaparecido e acendeu um incenso. Sentando na poltrona ficou à espera de Constanza, olhando as nuvens isoladas no céu azul.
Ancioso, já sem unhas, começa a arrancar a pele do canto da unha. Alguém bate na porta. Ameaça levantar da poltrona para atender, mas finge não estar ancioso e espera bater uma segunda vez. Batem novamente e vai atender sem olhar no olho mágico.
- Boa tarde senhor, desculpa estar incomodando mas vim aqui até mais cedo, à mando de Dona Cinira para te avisar que de noite, lá pras sete horas, vamos fechar o registro da água pra concertar um vazamento da rua.
- Ah sim.
- Então seria bom que o senhor enchesse uns baldes para de noite, porque talvez amanhã a água demore a volta.
- Ótimo! - Responde irônicamente ao rapaz de barba por fazer e sem um dente.
- Ta beleza então, valeu!
- Valeu!
Quando já fechava a porta desiludido, vê Constanza subindo a escada de acesso a seu apartamento.
- Tava me esperando? - Sacaneando como sempre o jovem pintor.
- Não, é que veio um cara agora mesmo me dizer que vai faltar água. - Responde desajeitado.
- Sei, sei... Tava é aí plantado na porta a minha espera... - Rindo.
- Na verdade é isso mesmo, mas estava com vergonha de dizer... - Irônico.
- E aí, preparando para fazer de mim a nova Frida Kahlo?
- Ôh, também não é pra tanto. Vou te passar o que aprendi nas Belas Artes.
- Ta certo então.
- Quer uma água?
- Não, obrigada.
- Primeiramente vou te apresentar o material.
Enquanto mostrava os tipos de pincéis e suas específicas utilidades, da rua entra um som de tiro como se fosse a alguns metros dalí. Carlos assustado fica em silêncio esperando aquele som passar, igualmente fica Constanza, com os olhos um tanto arregalados. Eles estavam alí, em silêncio, e os jovens rapazes negros estavam agora rodeados de moradores, deitados no paralelepído quente com os olhos abertos. Alguns moradores deram graças a deus, outros lamentaram. Santa Tereza fora alvo do cotidiano das favelas do Rio de Janeiro. Mais dois jovens, entre outros muitos que são assassinados por tentarem sobreviver na selva de pedra.
- Acho que morreu alguém. - Palpita Cons olhando na varanda a movimentação na rua.
- Enfim, é foda. - Desabafa Carlos.
- Ah, pinta alguma coisa pra eu ver. - Pede Cons.
- Mas assim, do nada?
- É, vai lá!
Bastante tinta vermelha, com falhas, sem ser totalmente completada a tela, Sem secar, ainda fresca a tinta, traços brutos de tinta preta com um pincél fino. Traços que formavam aos poucos olhos e um nariz. Traços desleixados.
- Ficou legal. - Elogia ainda em dúvida a jovem guria.
- Não gostei.
- Ah que isso, ficou bom, muito bom.
- Achei negativo.
- É, meio pesado, mas ta bom.
- Enfim, vou guardá-lo.
Guarda a pequena nova tela e esbarra numa grande, dois metros por três, em branco. Ela cai no chão, em cima de algumas tintas. Constanza vai ajudar, recolhendo as tintas, junto com Carlos.
Com o pescoço ao alcance do nariz de Carlos, seu perfume o faz perder o controle, no qual o leva até encostar o nariz no cangote e inspirar aquele doce perfume. Ela se arrepia e larga as tintas sobre a tela no chão. Vira-se para Carlos e o olha nos olhos, com o olhar de sede, desejo, por exatos dois segundos. Não pestaneja e beija a boca maliciosa de Constanza, que por sua vez, o agarra, com suas unhas nas costas de Carlos e o puxa pra cima da tela. Como tanto desejava, segura em sua cintura e morde os lábio de Constanza, ouvindo um gemido um tanto tímido, e suspiros ofegantes ao pé do ouvido.
Com todo o envolvimento, a tinta é derramada na tela onde os dois se deitavam, e consequetemente, já semi-nus, se sujavam nas tintas azul e verde, perto da cabeça, e vermelha, nos pés e pernas. Pernas entrelaçadas e inquietas, que se esfregavam e misturavam toda a tinta que se apropriava do ato sexual.
Ela passava as mãos sujas de tinta azul sobre as nádegas de Carlos, apertando, arranhando, subindo até as costas, perdendo força, forçando ela a alisar e acariciar com o resto da tinta entre os dedos, as costas vermelhas de Carlos.
Suspirava e gemia como uma jovem que saciava todo o dejeso guardado a séculos. Um gemido jovem, fraco, ao pé do ouvido de Carlos, que sedento, mordia desde seu pescoço até o ouvido, perdendo totalmente o controle de sua língua, que agora se misturava com um pouco de cabelo, e que não o incomodava nem um pouco, assim como toda a tinta em seu corpo, nem o forte cheiro da mesma, nem o chão duro, nada. Transava aquela menina tão intensamente e ao mesmo tempo lentamente, que o suor dos corpos fazia com que a tinta se espalhasse pelo corpos e sobre a tela. Não percebiam, mas a noite já chegara, e os corpos nus ainda se entrelaçavam. Mais um quadro destruído e refeito, mas não um quadro qualquer. Uma tela onde o desejo manuseou aqueles dois pincéis. Ao gozar, os dois em sincronia, um desabafo era ouvido da rua. Gozavam o amor, gozavam o prazer, gozavam da arte em sua melhor representação. Dois corpos nus, totalmente pintados, totalmente saciados, totalmente íntimos.
Percebem o que acabara de acontecer e começam a rir. Gargalhadas sinceras de olhares puros. Correm para o banho. Ainda marcava 6:34, e segundo o banguela, eles tinham vinte e seis minutos para tirar toda a tinta e suor. De tudo aquilo, estava lá deitado no chão as marcas do amor. Último banho das próximas 24 horas. Primeira tela das próximas milhares do mesmo tipo. Nascia não só um novo amor, nascia um novo artista dentro de Carlos. O artista que ele sempre escondia dentro de si.
- Amanha eu volto. - Disse Constanza, com olhos caídos e bocas próximas.
- Te espero, Cons.